Depois de se insurgir contra pontos da lei de abuso de autoridade e do pacote anticrime, ADPF se une a mais seis entidades associativas para maior participação em discussões sobre reforma da lei de lavagem de dinheiro.
Uma série de legislações recém-aprovadas vem enfraquecendo a capacidade de atuação dos órgãos que trabalham diretamente no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no Brasil. Só em 2020, entraram em vigor duas leis que mais significam retrocessos, do que avanços no combate aos crimes de colarinho branco: lei de abuso de autoridade e pacote anticrime.
A falta de uma ampla discussão por atores envolvidos na persecução penal e que resultou na aprovação de pontos inconsistentes das referidas leis, ao que parece, tende a se repetir na comissão criada pela Câmara dos Deputados, em setembro deste ano, para propor mudanças na lei de lavagem de dinheiro.
Para evitar que isso ocorra, sete entidades associativas, entre elas, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), encaminharam requerimento ao presidente da Casa Rodrigo Maia, manifestando a necessidade de maior participação nas discussões.
Freio no combate ao crime
Junto com a sanção da lei de abuso de autoridade e do pacote anticrime, o início de 2020 começou com uma avaliação nada animadora para o combate à corrupção no Brasil. A organização Transparência Internacional divulgou que o País repetiu, em 2019, a nota de 2018 no ranking mundial de percepção da corrupção: 35 pontos.
Enquanto em 2018, o Brasil caiu da 96ª posição, para a 105ª, em 2019, a queda se acentuou: agora, o País ocupa a 106ª posição entre 180 países avaliados no Índice de Percepção da Corrupção (IPC). Foi o quinto recuo seguido, o que representa o pior resultado desde 2012. Quanto melhor a posição no ranking, menos o país é considerado corrupto.
O documento apontou iniciativas que, ao invés de fortalecer, enfraquecem ainda mais o combate aos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Entre elas está a Lei nº 13.869/2019 – de Abuso de Autoridade – que define 45 condutas que poderão ser punidas com até quatro anos de detenção, multa e indenização à pessoa afetada.
O relatório da Transparência Internacional diz que essa lei foi aprovada “após um processo legislativo apressado” com pouca discussão e participação de especialistas e autoridades envolvidas. E considera que “existem várias disposições vagas e indefinidas na lei”, as quais “deixam amplo espaço para juízes, investigadores e promotores” sofrerem retaliação “por indivíduos poderosos sob investigação por corrupção”
Lei de Abuso de Autoridade
Na avaliação do delegado federal Edvandir Paiva, presidente da ADPF, a lei – que entrou em vigor em janeiro – causa um efeito desastroso no combate à corrupção no Brasil. Por isso a ADPF e outras entidades, principalmente as que representam servidores que atuam na persecução penal, acionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) para que a declare inconstitucional.
“Esperávamos que depois da Lava-Jato o Congresso tivesse procurado meios de facilitar o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Mas não foi o que ocorreu. As legislações aprovadas no ano passado dificultam a persecução e intimidam a atuação das autoridades”, avalia Paiva.
Para ele, deveria haver instrumentos mais incisivos e continuar no caminho das colaborações premiadas. Paiva diz que era esse o ambiente que estava sendo criado, mas foi destruído pelas medidas que foram aprovadas no Congresso e que viraram lei. “Esperamos que essas legislações sejam revistas”, afirma, referindo-se também a alguns pontos do chamado “pacote anticrime”.
De mãos atadas
Sobre o atual cenário da capacidade de atuação dos órgãos investigadores e do Judiciário, o delegado federal Mario Nomoto avalia estar havendo um “contra-fluxo jurídico, político e social” das grandes operações policiais instauradas no Brasil, em especial a Lava Jato. “Ao invés de impedir abusos [a Lei de Abuso de Autoridade], intimida delegados, promotores e juízes, responsáveis pelo combate à corrupção”, analisa.
Ele cita também a Lei nº 13.964/2019 – do pacote anticrime – que altera a legislação penal e processual penal. Para o delegado federal, alguns pontos desse pacote dificultam novos esforços para a repressão de condutas ilícitas e perpetuam o ciclo de impunidade.
“Visando à geração de impunidade e de descrédito do Estado, testemunhamos também recentes ataques na mídia e na opinião pública, à imagem e credibilidade dos órgãos e servidores responsáveis pelas investigações”, observa Mario Nomoto.
José Navas é outro delegado federal que percebe a Lei de Abuso de Autoridade como um instrumento que poda a atuação dos investigadores e, segundo ele, serve para atender a interesses de infratores alvos de operações policiais.
“Quem tem seus bens confiscados, ou foi preso em operações, é natural que busque mecanismos legais ou jurídicos para tentar se proteger de estar sendo investigado ou processado”, afirma.
Para Navas, o que ocorre em casos de investigações, não só no Brasil, como em qualquer país que enfrenta situações semelhantes, é a “jornada do herói”, só que invertida: os acusados são colocados como vítimas, como se estivessem sendo injustiçados e, no final, se implanta a dúvida se o fato delituoso apontado pelos investigadores realmente ocorreu.
Ou ainda, a tolerância da conduta ilícita mostrando o que o acusado “fez de bom para a sociedade”, apesar dos mal feitos. Isto para influenciar a opinião pública a ficar do lado dos réus.
“O efeito disso é que a opinião pública, por sua vez, vai querer sensibilizar os núcleos políticos dos seus estados a não combaterem a corrupção, por acreditarem na ‘jornada do herói’”, aponta o delegado federal. Ele diz, ainda, que essa massa criada em defesa dos réus acaba trabalhando para que nunca mais haja outra grande operação como a Lava Jato.
ADI
A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal ingressou, no Supremo Tribunal Federal (STF), com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6266 contra a Lei de Abuso de Autoridade. Para a ADPF, a lei é inconstitucional, ao descrever de forma genérica e passível de interpretações dúbias diversas condutas.
Além disso, argumenta a entidade, muitas dessas condutas já são inibidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo também avaliadas, quando pertinente, pelos órgãos disciplinares internos (corregedorias) e, eventualmente, externos (conselhos nacionais), sem prejuízo de outras formas de responsabilização administrativa-civil e também penal.
A associação entende que a referida legislação ameaça e intimida os agentes estatais, especialmente os membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário. E as condenações que podem ser impostas a esses agentes públicos, em decorrência da nova lei, reforçam o cenário de insegurança jurídica, uma vez que eles ficam sujeitos à punição – em razão do exercício de sua função -, a penas de até quatro anos de prisão e à perda do emprego público.
“Isso representa um retrocesso à atividade investigatória da Polícia Federal, já tão prejudicada por deficit de servidores públicos, insuficiência e obsolescência de equipamentos e, agora, o temor da responsabilização criminal”, sustenta a ação.
Na ADI, a ADPF lembra que o próprio contexto em que foi criada a Lei de Abuso de Autoridade mostra a sua faceta autoritária ao não dar espaço para a população discutir, discordar e contribuir de forma plural e democrática.
A comissão criada para debater o Projeto de Lei de origem (n. 7.596/2017), por exemplo, nunca foi instalada e seus membros jamais chegaram a ser indicados. E ainda foi aprovada sob injustificado regime de urgência, por votação simbólica, sem que a sociedade tomasse ciência sobre como votou cada um dos parlamentares.
“Por não ter passado por debate aprofundado ou ter sido sequer submetido a uma consulta pública, o Projeto não recebeu os necessários aprimoramentos e sugestões por parte da sociedade civil, das instituições públicas afetadas e de outros importantes atores do jogo democrático”, aponta a entidade.
Se assim o tivesse procedido, talvez a norma aprovada não estivesse com tantas falhas e contraditórios dispositivos que mais sugerem interpretações subjetivas do que um ordenamento jurídico legal.
Pacote anticrime
O chamado “pacote anticrime” é um conjunto de alterações de dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execuções Penais, proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ele passou por mudanças no texto original antes de ser aprovado pelo Congresso. Foi sancionado em dezembro de 2019 e entrou em vigor em janeiro de 2020.
Para rever os pontos mais prejudiciais, a ADPF está elencando cada um deles para apresentar ao Congresso Nacional – se for o caso, com projetos de leis específicos – e ao Judiciário, a fim de contestar os dispositivos.
Entre eles, durante a ação penal o juiz não tem mais o acesso amplo ao inquérito policial, só podendo conhecer aquilo que o Ministério Público ou a defesa levarem da investigação.
Antes, o magistrado tinha acesso a tudo, de ofício, o que facilitava a compreensão completa dos fatos e das circunstâncias apuradas. Mas, agora, ele só vai saber daquilo que as partes levarem. “E pode ser que não levem tudo. Esse é o problema. O juiz não vai conseguir ter uma ideia do todo e nem vai poder requisitar”, critica o presidente da ADPF, Edvandir Felix de Paiva.
Outro ponto é sobre o acordo de não persecução penal. O texto original definia até quatro anos de pena para crimes de menor potencial ofensivo e os crimes considerados não muito graves.
“Chegando ao Congresso, naquela tramitação muito rápida, mudaram a palavra ‘máxima’ para pena ‘mínima’ de quatro anos e, agora, pega qualquer caso de corrupção”, explica o presidente da ADPF. Segundo ele, isso vai desestimular os acordos de colaboração premiada.
A ADPF também contesta a obrigação da Polícia Federal, a partir da aprovação da nova lei, ter que pedir autorização da Justiça para acessar o banco biométrico e de impressões digitais de cidadãos investigados. Outro ponto criticado é a criação por lei de procedimentos muito detalhistas da chamada cadeia de custódia da prova. “É necessário haver uma boa cadeia de custódia, mas o formalismo exagerado previsto em lei pode dar causa a alegações de nulidade desnecessárias.”
Apesar dos pontos críticos, o pacote também tem pontos positivos, na avaliação de Edvandir Paiva. Ele cita as medidas contra facções criminosas, com aumento de penas para esse tipo de crime. E o instituto do juiz de garantias. “É um controle interessante para a investigação. Evita que o juiz se apaixone pela causa. Mas é necessário criar a estrutura”, analisa.