“Fortes, na linha avançada”. O trecho do hino da Polícia Federal denota uma corporação íntegra, combativa e assertiva. É uma instituição respeitada, com alto índice de credibilidade e com concursos disputados por candidatos de todos os cantos do País. Alguns, que consideram os policiais heróis, ignoram, por vezes, o fator humano do profissional. Diante de situações de perigo, pressão e estresse, o policial do Brasil está adoecendo cada vez mais e, além do desgaste físico, os problemas psicológicos afetam a vida dos que se arriscam para proteger a sociedade.
No estudo intitulado “O Trabalho e a Saúde dos Policiais Federais: Análise Clínica do Prazer e do Sofrimento”, encomendado pelo Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal, é possível avaliar a gravidade desse quadro. Elaborado pelas psicólogas Ana Magnólia Mendes e Fernanda Duarte, da Universidade de Brasília (UnB), o trabalho identificou 47 suicídios de delegados federais e agentes da PF, entre 1999 e 2018.
No estudo, foi levado em conta o contexto, a história da instituição e as mudanças na legislação do trabalho. Fernanda Duarte, uma das pesquisadoras, verificou a falta de material nessa temática. “Encontramos poucos estudos que focavam na saúde do policial e que também olhavam para os policiais como trabalhadores”, diz Duarte.
A pesquisadora faz um alerta para o isolamento dos policiais do Brasil. “É um trabalho muito intenso. A relação com a família fica deteriorada e, às vezes, é difícil se conectar com os outros”, afirma. “Os trabalhadores se sentem desamparados e o desamparo adoece”, conclui a psicóloga.
Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil, são 5,8 suicídios a cada grupo de 100 mil habitantes. No mundo, 14 pessoas se matam a cada 100 mil, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Somente na Polícia Federal, essa média é de 36,7.
Motivada pelo interesse de entender os altos índices de suicídio na Polícia Federal, a delegada federal Tatiane da Costa Almeida apresentou uma tese de mestrado, em 2013, no Instituto Universitário de Lisboa, na qual aborda as representações sociais da polícia e do suicídio entre os alunos dos cursos de formação profissional da Academia Nacional de Polícia. A pesquisa analisou as percepções do problema entre os futuros policiais federais brasileiros, a partir de entrevistas com 434 alunos da Academia Nacional de Polícia, com idades entre 21 e 49 anos.
“Ao contrário de outras profissões, na polícia, isso é muito comum. Comecei a investigar se existia alguma relação entre o exercício da atividade policial e algum fator de risco para o cometimento de suicídio”, conta Tatiane Almeida, sobre o início da pesquisa.
A delegada destaca os números alarmantes de suicídios na Polícia Federal do Brasil. “Verifiquei que, no mundo inteiro, existe uma correlação entre a taxa de policiais que se suicidam e que essa quantidade é muito maior do que na população comum. No Brasil, chega a 30% a mais”, aponta.
Na avaliação da delegada, o fato de ter acesso fácil a armas de fogo facilita esse percentual, embora não seja, por si só, determinante. “Tem relação mais com a própria profissão do que o fato de simplesmente ter uma arma”, explica.
O trabalho, muitas vezes, solitário, também contribui para o afastamento da família e dos amigos. A tensão e angústia se aliam a outro procedimento comum da vida dos policiais federais: a participação em missões e muitas viagens de trabalho, sem prazo para voltar.
Além disso, a rotina de convívio com as investigações dos crimes que assolam a sociedade também mexe com o psicológico do policial. Tatiane Almeida fala da própria experiência, ao investigar crimes ligados à pedofilia. “Você acaba ficando muito angustiado e suspeitando de tudo. Chegou um momento que eu suspeitava de todas as pessoas. Isso mexe muito com o inconsciente, com a sexualidade, com o que acha das outras pessoas”, conta. Segundo ela, quando se desconfia de todo mundo, não é possível ter relações muito legítimas e tranquilas com as pessoas. “Não se pode ter uma amizade sincera e até relacionamentos”, argumenta.
A Polícia Federal enfrenta um déficit de mais de 4,5 mil profissionais no quadro efetivo. Essa carência faz com que os policiais da ativa sejam sobrecarregados e, consequentemente, fiquem mais doentes. “É de uma forma muito contínua, porque a polícia tem um efetivo muito pequeno e acabamos sendo sobrecarregados de trabalho. Os policiais são os mais sacrificados”, ressalta Tatiane Almeida.
Sobre os que acham que a polícia é uma classe privilegiada, a delegada Tatiane rebate. “Teve a discussão sobre a aposentadoria. A sociedade acha mesmo que o policial se aposentar mais cedo é um privilégio. É difícil entender o desgaste mental de um policial. Eu não sei até que ponto será possível confiar no profissional que está tão desgastado”, afirma.
O corpo não aguentou
Há 15 anos na PF, o delegado federal José Navas, de São Paulo, sofreu com o estresse da profissão logo nos primeiros anos de carreira. A rotina intensa se aliou a uma alimentação desregrada e o corpo pediu socorro. Foi necessária uma cirurgia gástrica para resolver o problema. Navas passou um mês afastado de suas funções. “Serviu de um alerta gigantesco, uma lição de vida para a atenção a saúde física e como decorrência, a mental. Nunca mais fui acometido de enfermidades afeitas”, afirma o delegado.
Na avaliação de Navas, o fator humano do profissional de segurança pública tem que ser levado em conta. “É importante termos consciência que o policial é humano. Somos treinados tecnicamente para a prevenção e repressão da criminalidade, mas devemos também nos treinar a absorver os efeitos e consequências da atividade”.
José Navas também lembra que, ao mesmo tempo em que o policial adoece, a criminalidade aumenta. “O fenômeno criminoso é onipresente em todas as sociedades do mundo, em maior ou menor grau. E acaba por desembocar em um inevitável conflito entre o profissional de segurança pública e o infrator. Daí, o estresse e o desgaste são físicos e mentais”.
“Quando se atua na prevenção e na repressão da atividade criminosa é necessário ainda dosar o envolvimento emocional na atividade profissional”, diz Navas.
A delegada federal aposentada Esmeralda Aparecida de Oliveira também teve a saúde abalada por causa do trabalho. “O reflexo é uma irritabilidade muito elevada, problemas gástricos frequentes e insônia. Eu passei a minha vida profissional sentindo isso”. Ela diz nunca ter precisado se afastar por longos períodos do trabalho, mas teve que recorrer a acompanhamento psicológico. “O corpo sente. Eram coisas rotineiras”, conta a delegada.
Esmeralda defende a preservação do profissional para a boa execução do trabalho. “Há esse adoecimento. Precisamos ter um olhar diferente para a atividade policial para preservar a vida desses profissionais. E, para que eles possam estar atendendo da melhor forma possível, precisam ficar em boas condições físicas e mentais. Senão, o serviço também não será de boa qualidade”, explica.
A delegada federal aposentada Cristina Passos trabalhou na Polícia Civil antes de ingressar na PF. Para ela, foi necessário fazer um exercício diário para não misturar a vida privada com a profissional. “Para lidar com o crime todos os dias e manter o equilíbrio, é preciso ter uma inteligência emocional e uma sabedoria muito grande. É necessário trabalhar todos os dias para que você não saia de casa já estressado, ou leve os problemas do trabalho para o lar”, afirma.
Cristina também teve a saúde prejudicada pela atividade intensa como delegada federal. “Já tive hérnia de disco por causa da posição, eram oito ou mais horas por dia de expediente. O policial não tem horário”, conta a delegada. “Geralmente, meu trabalho passava das 10 horas, por acumular um cargo de chefia com a administração e presidência de inquéritos policiais”, explica.
Policiais 24 horas por dia
Viver o sonho de ser policial é, muitas vezes, abrir mão de vários momentos da vida particular. “Como você separa a vida pessoal da vida profissional, se você tem que estar à disposição do trabalho o tempo todo?”, questiona a pesquisadora Fernanda Duarte.
A delegada federal Esmeralda Aparecida de Oliveira conta como é lidar com a pressão das funções. “Enquanto policial, a gente faz o juramento de colocar a nossa vida em risco para a defesa da sociedade, esse é o trabalho que nos propomos a fazer. Somos policiais 24 horas por dia. Isso traz uma carga que você vive com ela durante o trabalho e fora dele. É estar sempre observando, ligado no que está acontecendo ao seu redor”, explica.
Para a delegada Cristina Passos, a classe deve ser mais reconhecida e assistida. “A Polícia Federal, como todas as outras forças de segurança no Brasil, deve ser mais valorizada e ter mais autonomia para dar mais condição de tratar a saúde física e, principalmente, mental do policial que trabalha incessantemente para combater o crime e fica 24 horas por dia à disposição, com o celular ligado, podendo ser acionado a qualquer hora”, afirma.
As relações com a família e amigos também ficam distantes. “Eu acho que fica prejudicada por causa da nossa atividade, que é de exclusividade. Você tem que estar a qualquer hora do dia ou da noite à disposição, para ser acionado para uma missão, uma operação, cumprir prazos”, diz Cristina Passos.
“Alguns policiais trabalham em regime de plantão. Ele passa a ser uma pessoa que os outros não contam em eventos sociais”, ressalta a delegada Tatiane Almeida.
Mais conscientes
A saúde do policial ainda é considerada um tabu. No entanto, as novas gerações da instituição estão mais conscientes e atentas aos problemas que estão sujeitos. Para Tatiane Almeida, a corporação entende melhor as consequências da profissão. “Hoje, as pessoas já entram na polícia sabendo que não vai ser tão fácil”. Por isso, é preciso cuidar, também, dos que estão muito isolados, em postos nas fronteiras.
Ela destaca como positiva o determinação do pagamento de adicional para os profissionais que trabalham em regiões remotas. “A pessoa que está lá, precisa sair, voltar para ver a família. Ficar em um lugar só convivendo com a criminalidade é muito prejudicial. O principal fator de risco é o isolamento social”, argumenta Tatiane.
“Felizmente, hoje, observamos que os colegas de trabalho, tem grande esclarecimento das doenças decorrentes da atividade laboral e do mau gerenciamento da saúde, seja física ou mental”, avalia o delegado José Navas. Segundo ele, as chamadas “doenças da alma”, como se tratava o fenômeno de saúde mental antigamente, deixaram de ser tabu ou um item de segregação. “Hoje, cada vez mais, são observadas como uma doença de verdade, com diagnóstico, tratamento e cura. Isso já é boa parte da eficácia do tratamento”, conclui.